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Este campeonato vai ser um despautério. Tudo porque a justiça desportiva não funciona e se recusa a castigar com a pena óbvia da irradiação os múltiplos artistas do sistema, com os seus nomes de código e os seus métodos de falsários
Algumas pessoas têm uma tolerância surpreendente para este tipo de situações. Eu nunca tive. Há 20 anos, ou talvez mais, dois jogos decisivos da derradeira jornada de uma série qualquer dos campeonatos distritais de futebol terminaram com resultados impensáveis. Qualquer coisa como 18-6, um, e 21-7, o outro.
Na altura eu era jornalista de A BOLA. Todos os domingos recebia as chamadas telefónicas dos correspondentes locais e tomava nota dos jogos e das classificações. O despropósito dos números dos golos daqueles dois jogos motivou-me a querer saber porquê e como e quem.
A curiosidade profissional foi rapidamente satisfeita. Os dois clubes supergoleadores de terras vizinhas disputavam entre si a subida de escalão e estavam igualados em pontos a uma jornada do fim. A temporada iria resolver-se pela diferença de golos. E até nesse pormenor as duas equipas rivais tinham um score idêntico.
E todos tiveram a mesma ideia. Os guarda-redes das equipas adversárias foram amaciados, os árbitros foram sensibilizados, alguns jogadores das equipas pretendentes à subida rubricaram exibições não menos estranhas e marcaram golos na própria baliza. Os dois resultados avolumaram-se até ao ponto da demência. E porquê? Porque cada equipa tinha um espião no campo do adversário. A missão do espião era correr para o telefone do café mais próximo sempre que houvesse um golo e informar os da sua cor da marcha do marcador.
Nunca dois espiões correram tanto e telefonaram tanto. E, assim, dentro das quatro linhas os jogadores iam sabendo como paravam as modas e os golos que tinham de deixar entrar, uns, e que tinham de marcar, outros.
A história tinha pinceladas neo-realistas. Cheguei a falar com algumas testemunhas dos acontecimentos e houve uma (torcia pelo clube que acabou por ficar em segundo lugar e não subir) que me garantiu ter a GNR ajudado o clube adversário ao disponibilizar ao espião os meios sofisticados de comunicação telefónica da sua carrinha destacada para manter a segurança pública do espectáculo.
Recolhida esta primeira dose de informação dirigi-me ao mítico chefe de redacção de A BOLA, Vítor Santos, e, contando o que já sabia, pedi autorização para me deslocar até às duas localidades em questão para fazer uma reportagem.
— Para fazer o quê? — perguntou o meu chefe.
— Uma reportagem. Falar com os dirigentes, com os jogadores, com os espectadores…
— Pois, pois…
— Ia eu e um fotógrafo. É uma grande história, chefe! — insisti num entusiasmo pueril.
Mas não tive sorte nenhuma.
— Sabes, rapariga, eu acho melhor não tocar nisso — disse-me o Vítor Santos. Olhou-me nos olhos, inclinou-se para trás na sua cadeira de chefe e cruzou as mãos em cima da barriga.
— Não tocar nisso?
— Nem ao de leve. Essas coisas existem, sempre hão-de existir mas torná-las públicas faz mal ao futebol e nós, jornalistas, não podemos fazer mal ao futebol.
O meu respeito por Vítor Santos leva-me a querer acreditar que se hoje fosse vivo teria mudado de opinião. No entanto, eu não mudei.
O que faz mal ao futebol é a impunidade.
Se o dirigente dos quinhentinhos tivesse sido irradiado no momento em que a opinião pública e a justiça desportiva tiveram conhecimento do seu método de aliciamento o futebol agradecia.
E talvez o futebol não estivesse neste actual patamar de lodo.
A Federação Portuguesa de Futebol e a Liga de clubes têm órgãos de justiça e de disciplina. Do que estão à espera para intervir, saneando o futebol da manipulação com cara e com nome?
O que mais será preciso para irradiar dirigentes, empresários, árbitros e outros figurões mais ou menos simpáticos?
A figura disciplinar da irradiação não existe na Lei de Bases do Sistema Desportivo?
Pode o Ministério Público arquivar tudo o que quiser. Mas quando o procurador escreve que «o modo de actuação» passa pela sugestão de nomes de árbitros, pelo conhecimento antecipado de nomes de árbitros, pela pressão directa ou indirecta sobre os mesmos árbitros e transcreve diálogos com frases como «o chefe da caixa», «bem roubadinho», «se quer umas viagens para o ano temos de atalhar caminho», «tu pediste, foi-te concedido», «é a malta que o pode fazer chegar onde ele quer», «queriam um penalty mas eu dei-lhe um amarelo», «dou-lhe uma beijoca», «ai se não fosse eu», «o senhor para mim é como um pai», «conceda-me essa graça», «trouxemos um carregamento que nem cabia na mala», «12 minutos que eu dei e nem assim», «o Serafim vai vacinado», «não pode fazer muito porque o jogo dá na televisão, percebe?», toda a gente percebe.
E porque temos nós, os que gostamos de futebol, de continuar a aturar estas pessoas todas nos seus postos de sempre, impunes, viciosas, trocando graçolas promíscuas com políticos em funções, em directo na televisão, ou recebendo honras de Estado em nome dos votos das «massas associativas»?
E não se pode irradiá-los?
O futebol, para continuar a ser o espectáculo que é, precisa de 11 jogadores de cada lado. Os jogadores existem, a bola também. Não deve ser muito difícil o nascer de uma nova geração de dirigentes e de árbitros. Estes que temos e que mandam e são mandados estão feitos há anos, há décadas. O fim de uns será o fim dos outros. Por isso, passado o susto inicial do apito dourado, continuarão a proteger-se porque uns são «uns pais» e outros «uns filhos» dependentes e respeitadores e «vacinados».
Este campeonato promete ser o mais transtornado de sempre, o mais polémico, o mais escandaloso. Adivinha-se um despautério no que diz respeito à arbitragem, aos lamentos, aos penalties e aos carregamentos de dúvidas que não cabem nas malas.
Tudo porque a justiça desportiva não funciona e se recusa a castigar com a pena óbvia da irradiação os múltiplos artistas do sistema, com os seus nomes de código e os seus métodos de falsários.
Têm medo de quê? De quem?
Porque é que não se pode irradiá-los? De preferência já!
Há pessoas com quem não se pode nem se deve tomar sequer um café. Muito menos falar de qualquer assunto que não seja uma troca trivial de cumprimentos ou duas frases sobre o tempo que faz. Os presidentes do Benfica e do Belenenses quando falam com o presidente da Liga sobre a nomeação de um árbitro para um jogo entre os seus dois emblemas estão a ser levados na brincadeira, por mais que achem que também eles têm uma pequena voz a fazer ouvir e que ambos podem escolher o «mal menor». O resultado é que acabaram por passar por esta vergonha.
É evidente que logo vieram, pressurosos, os serventuários do poder, tentar meter no mesmo saco viagens a Cancun, meninas de programa, promessas de favores e ameaças de despromoções com a inanidade dos diálogos Valentim-Vieira. Mas é por isto mesmo que não se deve atender o telefone a algumas pessoas.
O presidente ideal do meu Benfica manteria esta conversa meteórica com o presidente da Liga:
PRESIDENTE DA LIGA: Estou-lhe a ligar por causa do árbitro do jogo com o Belenenses.
PRESIDENTE IDEAL DO BENFICA: Mas o que é que o senhor tem a ver com isso? O Luís Guilherme está doente?
PRESIDENTE DA LIGA: Quer o Paixão? Ou o Lucílio? Talvez o Paulo Costa a apitar…
PRESIDENTE IDEAL DO BENFICA: A apitar só a sirene da polícia e já.
E logo descia o pano.
Os três jogos de suspensão aplicados a Petit são pena leve. Valerão para, assim que der jeito, vir o Benfica a ser acusado de favores do alto.
(*) Texto de Leonor Pinhão "Contra a Corrente", in A Bola
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